A Dor do DesAmor
por Laura Sacchet Jaskulski
#feminicidio #violenciacontramulher #violenciadomestica
Vem sendo noticiado pelos veículos de comunicação um aumento da violência doméstica, e do feminicídio, desde o início da pandemia e do isolamento social, em detrimento de uma redução das estatísticas de outros crimes, como roubos e assaltos, que não envolvem a questão de gênero. Se a ausência da circulação e da movimentação social nos deixou enclausurados, confinados em nossas moradas internas, o isolamento social, em contrapartida, fez emergir perdas e lutos do real, mas também aqueles não elaborados; foi uma espécie de catalisador das conflitivas internas; acelerou a emergência de processos não revisitados nem elaborados em outros tempos.
O que o aumento da violência verbal e/ou física pode estar mostrando? Sem dúvida, o viés econômico se pronuncia de uma forma muito diferente entre as classes sociais, as condições de habitação e de moradia, sendo que, por vezes, a violência é posta em ato pela precariedade desses fatores. Mas o tema deste escrito é sobre a violência, independente de classe social. A violência que, muitas vezes, não é percebida; é invisível até mesmo aos olhos de quem a sofre na própria pele. Quando a pessoa que sofre a violência não se percebe como vítima e fica à mercê da violência do outro, numa relação abusiva, regida pela possessividade do mortífero, sem espaço para alteridade. Quando a vítima não suspeita do que está porvir; somente mais tarde ou tarde demais vai compreender o perigo a que esteve exposta. Dados apontam que, em torno de 70% dos casos, a violência, com ou sem morte, é perpetrada pelo parceiro ou ex. Ninguém permanece em uma ligação afetiva assim porque quer ser acometida das agressões do outro. Pode-se pensar que talvez sejam nas tentativas de rompimento do relacionamento abusivo, por parte da vítima, que seja posta em ato essa violência extrema.
Uma inermidade no Eu denunciam fragilidades primitivas. A vivência do desamparo que a perda do objeto pode promover talvez esteja na raiz dessa questão. Falhas no processo de narcisização, investimentos realizados necessariamente pelo objeto, deixam cicatrizes, lesões não aparentes, exiladas no Eu. Aponta Freud (1914) que o perigo inicial que acomete o Eu é a perda do amor dos pais; "mais tarde, os pais serão substituídos por um número indefinido de outros companheiros" (Ibid., p. 119). Assim, poder-se-ia pensar que, no relacionamento abusivo, exista um desejo de completude da vítima com o abusador, desejo narcísico da nostalgia de um (re) encontro primordial do eu ideal; encontro que nunca houve ou que aconteceu de forma precária. Essa é a relação de dependência que o Eu tem do outro desde os primeiros tempos.
Marucco (2013) compreende a estruturação do aparelho psíquico através de diferentes modalidades de inconscientização. Destaca que, na zona inconscientizada narcisista, ocorre a instalação de um ideal, o qual denomina "estrutura idealizadora". Nesta, a privação do amor acarreta o forjamento do ideal narcisista, tentativa de reconstruir uma história mítica do amor, independente da realidade material. Entende que o processo de inconscientização dessa estrutura é tanto lugar de refúgio frente ao poderio do objeto quanto fonte de patologias: quando a projeção do ideal intrapsíquico se localiza em um objeto externo ao qual é outorgado excesso de poder; idealização do objeto (Ibid., p. 122). Estas são algumas questões para pensar como podem estar entrelaçadas a temática da violência doméstica e do feminicídio e a relação de subjugação do Eu ao objeto, quando isso resulta numa idealização do objeto, "pessoa salvadora", nas palavras de Freud (1914, p. 118). Repetição do narcisismo ferido que está "além do princípio do prazer"; repetição da humilhação, da desilusão, refere Marucco (2013, p. 123). É no singular espaço da escuta analítica que o trauma e o sofrimento poderão conectar, à repetição, a história do sujeito, para poder transformá-la em uma nova temporalidade.
REFERÊNCIAS
FREUD, S. (1914). À guisa de introdução ao narcisismo. In: FREUD, S. Escritos sobre a psicologia do inconsciente. Rio de Janeiro: Imago, 2004. p. 95-132. (Obras psicológicas de Sigmund Freud, 1).
MARUCCO, N. A prática psicanalítica contemporânea: as zonas psíquicas e os processos de inconscientização. Psicanálise: revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, Porto Alegre, v. 15, n. 1, p. 113-136, 2013.