Ciúmes, Paranoia e Feminicídio 

Mourning Woman, 1912 (tradução livre, Mulher de Luto) Egon Schiele
Mourning Woman, 1912 (tradução livre, Mulher de Luto) Egon Schiele
"A cor do batom, a roupa que ela está vestindo, uma mensagem no celular, um perfume diferente, um olhar mais demorado em uma direção.... os mínimos detalhes servem para a criação do delírio de traição..."



   A palavra "paranoia", de origem grega, é composta pelo prefixo para ("ao lado de", "fora") e pelo sufixo noia ("de si"). Ou seja, paranoia significa "fora de si". Mas o que é lançado para fora de si? Para fora do Eu? No delírio paranoico, a realidade externa é rejeitada (foracluída) e recriada a partir de um remendo construído com os alicerces do mundo interno, do Isso. O ódio – a pulsão destrutiva – brota violentamente do Isso e, em um ímpeto, destrói o outro vivido como ameaça. Então, indagamos: a paranoia, com seus contornos obscuros, ao desencadear um surto psicótico, poderia construir um delírio de ciúme e levar ao crime de feminicidio?

 Antes, uma breve síntese do percurso da paranoia na obra freudiana. Em sua correspondência com Fliess, no "Manuscrito H", Freud (1895) afirma que "a paranoia crônica, em sua forma clássica, é um modo patológico de defesa, tal como a histeria, a neurose obsessiva e a confusão alucinatória. Alguém se torna paranoico em relação a coisas que não pode suportar, desde que tenha a predisposição específica para isso" (p. 15). O peculiar da defesa paranoica, afirma Freud (op.cit), diferentemente do sintoma histérico e de uma representação obsessiva, é que nela o conteúdo objetivo permanece o mesmo; o sujeito defende-se de uma representação intolerável para o Eu, projetando seu conteúdo no mundo exterior.

  Em 1911, no caso Schreber, Freud articula a paranoia a determinada forma de fracasso do recalcamento de fantasias homossexuais: "o caráter paranoico está em que, para defender-se de uma fantasia de desejo homossexual, reage-se precisamente com um delírio persecutório" (p. 79). Ele refere que, na paranoia, a etiologia sexual não é óbvia. Em sua motivação, teremos como destaque um desprezo ou um agravo social causado por um outro. É o delírio que porá a nu tais correlações, que deixará transparecer "o vínculo entre o sentimento de desprezo sentido e o desejo erótico grosseiro-sensual" (FREUD, 1911, p. 80). Freud (1911) vincula a paranoia e o delírio de perseguição a uma ligação homossexual superintensa, sendo o perseguidor, no fundo, alguém amado no passado. Este "permanece fixado nas mesmas pessoas no mesmo sexo em que recaiu sua escolha amorosa antes da transformação paranoica" (p. 93).

  No texto "Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranoia e na homossexualidade", Freud (1922) compara a personalidade ciumenta à paranoica, sendo a primeira pertencente ao terreno edípico, e a segunda, às patologias narcísicas. O ciúme competitivo ou normal, apesar de se apresentar como atual, é uma reedição do sentimento que pertenceu à criança no passado, ainda presente inconscientemente no adulto da atualidade. Este tem suas raízes na perda do objeto de amor dos primeiros tempos, relacionado ao seio e à mãe, aquela que nutriu a criança. Nesse texto, Freud irá explorar como a vivência do amor infantil servirá de base para os relacionamentos futuros: com a parceira, com os colegas de trabalho e/ou com as amizades.

  O segundo tipo de ciúme descrito por Freud (1922) é o projetivo: o homem projeta na parceira seus impulsos inconscientes reprimidos de infidelidade, acusando-a de tal intenção. Em momentos de maior tensão pulsional, ele fará uso da projeção para drenar seus próprios impulsos e, assim, obter alívio do excesso pulsional. Dessa forma, absolve-se de sua consciência moral ao acusar e culpar a parceira de infidelidade.

  Em seu delírio de referência, o paranoico persecutório, segundo Freud (1922), é o sujeito que espera que todas as pessoas, até mesmo os estranhos, correspondam à sua demanda de amor. Demonstra ressentimento em relação a sua parceira quando a sente indiferente a ele, interpretando seus gestos como hostilidade. Os conteúdos do delírio não são desprovidos de sentido, indica o autor; ao contrário, buscam sua matéria-prima nas moções pulsionais inconscientes do Isso.

  Os ciúmes podem evoluir e se tornar uma ideia delirante, como no caso do paranoico delirante. Este, atento a todos os sinais, decodifica a partir das atitudes da parceira motivos para a criação de um delírio de traição. Demonstra atenção extraordinária a todos os movimentos da mulher: gestos, postura, olhar, os mínimos detalhes servem como provas para a criação do delírio de traição, para ratificar a percepção de que há uma intenção de envolvimento amoroso ou traição a ser levada a cabo pela parceira com outro homem. O motivo para isso, explica Freud (1922), é o despertar da moção pulsional que pertence ao próprio sujeito.

  Uma possibilidade de pensar as questões do feminicídio seria considerar que o homem, por meio da criação do delírio de traição, atribui a um terceiro a posição de perseguidor, e à sua parceira interesse erótico em relação a todos os homens que ele próprio esteve inclinado a amar. Ao deslocar e projetar seus próprios impulsos homoeróticos em sua parceira – em escala gigantesca – acusando-a de infidelidade, ele se protege de entrar em conflito com aquilo que seria intolerável em si mesmo: sua libido homossexual.

  Embora pareça algo atual, as ideias delirantes podem ter estado presentes, adormecidas e latentes, e terem sido toleradas pelo psiquismo por longo tempo, junto à vida anímica normal, sem produzir efeitos. Fatores quantitativos (pulsionais) e qualitativos (acontecimentos emocionais) podem desencadear o que estava recalcado, mas à espreita, até então. Um superinvestimento por ocasião de uma reviravolta na economia libidinal pressiona e faz irromper o conflito.

  Na formação do sintoma paranoico, uma percepção interna é suprimida e substituída por uma percepção externa. Para defender-se da fantasia de desejo homossexual, a criação do delírio persecutório estaria a favor de transformar o "Eu (um homem) amo ele (um homem)" em "Eu não o amo – eu o odeio". "Eu o odeio" transforma-se em "Ele me odeia (me persegue), o que, então, justifica que eu o odeie" (FREUD, 1911, p. 84). Fica claro que, quando a relação de amor com um determinado objeto é interrompida, o ódio poderá surgir em seu lugar, dando-nos a impressão de uma transformação do amor em ódio (FREUD, 1915).

  A transformação do conteúdo da pulsão em seu contrário (do amor em ódio) no delírio persecutório e o uso excessivo do mecanismo da projeção visariam a evitar que o sujeito entrasse em contato com a ideia, inaceitável para o Eu, de seu desejo inconsciente despertado pela libido homoerótica que, fermentando de modo inconsciente, pode ter sido repentinamente (re)despertada por um outro homem. A impossibilidade de articular sua angústia e seu sofrimento – uma vez que não reconhece que essas manifestações pulsionais (inconscientes) lhe dizem respeito – pode tornar o paranoico delirante perigoso para si mesmo e para o outro. Ao entrar em um surto psicótico, ele pode fazer uma passagem ao ato, fazendo irromper a atrocidade de sua destrutividade, como ocorre no feminicídio.

  É na barbárie deste ato que podemos ter a mais clara visão da fúria da pulsão de morte, representada pela agressão e pelo sadismo do homem que mata sua parceira. Ele a mata porque acha que ela mereceu, acha que ela deu motivos para isso; extravasa, assim, seu gozo narcísico e descarrega, desta forma, sua tensão libidinal no aniquilamento homicida dela. Como refere Freud (1923), nas reações de vingança, não importa o objeto, "é preciso haver castigo, ainda que não recaia sobre o culpado". No feminicídio, é como se o homem funcionasse na lógica do: quando "o único ferreiro da aldeia cometeu um crime capital, um dos três alfaiates tem de ser enforcado" (p. 56).

Referências

FREUD, S. (1895). Manuscrito H. In: FREUD, S. Neurose, psicose e perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2018. p. 15-21. (Obras incompletas de Sigmund Freud, 5).

FREUD, S. (1911). Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia ("O Caso Schreber"). In: FREUD, S. Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia ("O Caso Schreber"), Artigos sobre técnica e outros textos [1911-1913]. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 13-107. (Obras completas, 10).

FREUD, S. (1915). Comunicação de um caso de paranoia que contradiz a teoria psicanalítica. In: FREUD, S. Neurose, psicose e perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2018. p. 83-97. (Obras incompletas de Sigmund Freud, 5).

FREUD, S. (1922). Sobre alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranoia e na homossexualidade. In: FREUD, S. Neurose, psicose e perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2018. p. 193-207. (Obras incompletas de Sigmund Freud, 5).

FREUD, S. (1923). O Eu e o Id. In: FREUD, S. O Eu e o Id, "Autobiografia" e outros textos [1923-1925]. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 13-74. (Obras completas, 16).


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