por Laura Sacchet Jaskulski
Este escrito é sobre Dani, protagonista do filme Depois a Louca Sou Eu. Desde pequena ela é assolada por momentos de angústia intensa, fobias. Atormentada de que algo pudesse acontecer à sua mãe, precisa constantemente certificar-se de que ela esteja bem. Dani cresce, mas a cada tentativa de trilhar um lugar para si mesma, seja para lazer, seja a trabalho, fica paralisada. Quanto ao pai, pouco se sabe dele. À primeira vista, face a angústia paralisante de Dani, ela poderia ser diagnosticada com transtorno de ansiedade; ou, talvez, pela alternância das manifestações afetivas na forma de se relacionar, também poderia ser "compreendida" com um transtorno de humor.
Mas do que padece Dani? Pelo vértice psicanalítico, poderíamos pensar numa menina que busque nas relações afetivas objetos que supram sua necessidade de ser olhada. Sob a perspectiva das questões pré-edípicas, poderia-se pensar num viés infantil de se relacionar com o outro, uma atitude defensiva perante o desejo; por um lado, uma nuance histérica encobrindo uma necessidade narcísica, e, de outro, um tom sombrio aludindo a melancolia, como expressão de uma sensação de vazio.
O sintoma histérico descrito por Freud, no final do século XIX, era visto como aquele que escondia e revelava um prazer oculto, alijado no inconsciente recalcado. Ampliando essa ideia, autores contemporâneos também têm referido que na histeria, o desejo teria um cunho mais narcísico do que sexual; a histérica estaria aprisionada ao desejo do outro - inicialmente, o outro parental. No rascunho G (1895), Freud aponta que na Melancolia há um grande anseio pelo amor em sua forma psíquica, uma perda na vida pulsional, um empobrecimento da excitação, uma hemorragia interna, atuando como ferida. Mas é, sobretudo, em Sobre o Narcisismo (1914), que ele começa a dar tessitura em como se constitui o Eu, apontando um Eu que, na relação com o outro, pode ficar aprisionado ao desejo deste. Um ano mais tarde, escreve Luto e Melancolia, publicado em 1917, no qual alicerça a Melancolia às questões das identificações; aqui a ferida narcísica é pela perda objetal, o investimento libidinal é substituído por uma identificação narcísica com o objeto perdido; a ira do Supereu volta-se contra o Eu. As recriminações que seriam originalmente dirigidas a um outro - alguém que se ama, que se amou ou que se deveria amar - são direcionadas a si mesmo: a sombra do objeto recobre o Eu. Em seus escritos posteriores, Freud vai desvelando cada vez mais a relação de dependência do Eu com as demais instâncias e o mundo externo.
Deste modo, a forma como Dani se relaciona vai nos dando notícias de um Eu empobrecido, precariamente constituído, que anseia pela necessidade de um investimento amoroso do outro. Dani não padece de uma patologia melancólica como a descrita por Freud em 1917; anseia por algo ou alguém que lhe supra sua sensação de vazio, vestígio dos tempos da vivência do desamparo. Por vezes, ela parece, em parte, ter ficado aprisionada a um primeiro tempo, o do Eu-Ideal, do desejo parental - necessário e constituinte; porém, alienante, se não puder realizar seu Ideal-de-Eu. Nesses momentos, reapresenta-se uma história/ferida que não prescreveu, fazendo reviver o traumático, a repetição.
Em alguns momentos, lhe falta o ar; há um transbordamento da angústia, derramando no corpo a intensidade pulsional que não pode ser traduzida e transformada em palavras. Ataques de ansiedade tornam-se sua válvula de escape; o psíquico, que não pode ser enlaçado pelo outro, inunda o corpo biológico. Busca salvaguarda usando os mais diversos tipos de medicamentos (em busca da "paz" e da "felicidade") para acalmar o psíquico; e vai vivendo comprimida.
A ficção imita cenas da vida real. Essa história é sobre Dani, mas poderia ser de qualquer um de nós, se permanecêssemos presos ao idílio das relações incestuosas e/ou filicidas do berço do qual nascemos, enredo escrito por este outro, parental. A mãe de Dani, provavelmente, fez esse tolhimento de forma inconsciente para dentro do psiquismo "em construção" de sua filha, porque, talvez, a ruptura deste pacto ameaçasse sua integridade narcísica. Talvez qualquer movimento de autonomia da filha pudesse ser interpretado como rejeição e abandono. Assim, a presença desmesurada do objeto primordial (possivelmente excesso de presença física e ausência de investimento emocional) não permitiu uma constituição mais integrada de um Eu, (separação eu/objeto primário), na fase do narcisismo. Dani, por suas questões masoquistas, acaba sucumbindo e acatando o mandato endogâmico materno. Uma terceira pessoa (o pai e/ou analista) poderia ajudá-la, a dar sentido às experiências traumáticas vividas pela criança, em um tempo em que ainda não havia um Eu integrado, constituído, para assim permitir Dani começar a escrever sua história, de e pelo próprio punho... mas aí, a história seria outra.
REFERÊNCIAS
Depois a Louca Sou Eu. Diretora: Julia Rezende. São Paulo: Paris Filmes, 2021. Baseado na obra literária Depois a Louca Sou Eu, de Tati Bernardi.
FREUD, S. (1895). Rascunho G. In: FREUD, S. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969. p. 275-282. (Edição standard brasileira, 1).
FREUD, S. (1914). À guisa de introdução ao narcisismo. In: FREUD, S. Escritos sobre a psicologia do inconsciente. Rio de Janeiro: Imago, 2004. p. 95-132. (Obras psicológicas de Sigmund Freud, 1).
FREUD, S. (1917). Luto e melancolia. In: FREUD, S. Escritos sobre a psicologia do inconsciente. Rio de Janeiro: Imago, 2006. p. 99-122. (Obras psicológicas de Sigmund Freud, 2).
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