Debate sobre o Livro 

Histórias de captura

Investimentos Mortíferos nas relações mãe e filha 

                          de Ana Cláudia Meira 


          Por  Laura Sacchet Jaskulski

    

 Debater sobre as histórias de captura e os investimentos mortíferos nas relações mãe e filha, é adentrar na temática do investimento pulsional no tempo inicial da vida do infans. Neste momento inaugural, dos primeiros arranjos - do choro e do desconforto - poderá advir um acorde, um começo de uma melodia rudimentar de comunicação do bebê junto a mãe, ou, poderá resultar em dissonâncias e estrondos, - berço do trauma sem uma trama psíquica. Tempo das primeiras impressões e inscrições inconscientes, no qual o Eu do infans encontra-se extremamente vulnerável, dependente do objeto. 

   Nestas Histórias de captura, os tempos se tornarão infindavelmente misturados; gerações serão justapostas. O que vamos percebendo são inseparações; indiscriminação. Esses investimentos mortíferos nos contam histórias de encontros pouco erotizados com o objeto materno, nos quais a intensidade da destrutividade e o desamparo revelam formações inconscientes pouco amalgamadas. As Histórias destas analisandas terão caminhos diferentes: algumas pagarão a dívida com suas mães com a vida psíquica, outras com o corpo biológico, e com certa licença poética, talvez pudesse-se dizer com um corpo sem alma.

   Em algumas destas relações mortíferas não encontraremos uma eloquência ruidosa: talvez encontremos o sintoma vertendo no corpo a dor psíquica. O corpo que, para além do biológico, também é um meio, um caminho de escoamento e transbordamento do psíquico. Dentre as sensações transferenciais-contratransferencias com estas analisandas destacam-se: vazio, apatia, sensação difusa de inexistência; falta de sentido e de sentir, nas quais as palavras reverberam o nada, apenas um balbuciar, até que medos, sentimentos e angústias possam se tornar narrativas de seu sofrimento.

   Dentre as vicissitudes da constituição psíquica destas filhas deparamo-nos com patologias que perpassam o universo do arcaico, com uma trama pouco historicizada, de pouca erotização pulsional: clínica do vazio, das anorexias e bulimias, da psicossomática, das atuações graves, do pânico. Requer um trabalho de escuta que transcorre para além da linguagem verbal, da compreensão das fantasias e do recalcado: analisandas que chegam com a "alma em carne viva", algumas inundadas de angústia, outras, esvaziadas, desoladas.

  A captura não acontece de uma hora para outra. É algo que vai sendo paulatinamente construído ou obstruído na relação da mãe com sua filha. Frases proferidas pelas mães de captura, tais como, "tu és tudo para mim, somos só eu e tu, dei minha vida por ti" trazem um tom ressentido, tornando sua cria cúmplice de seu martírio e testemunha impotente de seu sofrimento. Ana narra como foi-se engendrando nestas meninas-mulheres o aprisionamento ao desejo narcísico alienante: mães ressentidas, queixosas, que através da vitimização atribuem toda responsabilidade afetiva a alguém, a um outro, inclusive as suas filhas; em um jogo que visa a perpetuação da relação de captura, de enclausuramento.

  Algumas mães irão vociferar ainda mais alto a destrutividade, bradando "eu devia ter mesmo abortado, não devias nem ter nascido, ou podes morrer, pois não farás falta para ninguém" (MEIRA, 2021, p. 158), veiculando desta forma o gozo[1] da pulsão de morte, projetada sobre a filha, produzindo o aprisionamento narcísico desta a sua mãe. Por sua constituição frágil, o Eu fica passivamente identificado nesta relação de enredamento, que se deu precocemente: submetidas, essas filhas acabam por sucumbir, acatar, aceitando sem crítica, passivamente o lugar que lhes é atribuído pelo objeto materno.

  A indiferenciação entre a criança e a mãe, que caracterizam os primeiros tempos da vida psíquica, faz com que, segundo as palavras de Kehl (2009), do ponto de vista da criança, toda oferta do Outro seja interpretada como demanda. O bebê desconhece a natureza do objeto capaz de aplacar a insatisfação inicial. A mãe que oferece o seio, ocupa o lugar de um Outro que supostamente sabe o que o filho deve querer. Assim, nos diz Kehl, do ponto de vista do infans, não há diferença entre oferta e demanda, não há discriminação entre o eu e o Outro.

  De meninas a mulheres, essas filhas impossibilitadas de implicarem-se como sujeito desejantes, vão ficando, assim, subjugadas a essa solução. Abdicam de um lugar que nunca ocuparam, porque possivelmente não puderam viver a subjetividade do desejo em separadas de suas mães. Filhas, que em sua pré-história, em sua dependência infantil, foram submetidas a privação impostas por sua progenitora, mas seguem aprisionadas aos desígnios maternos em busca de "proteção". Essa questão aparentemente enigmática e paradoxal, talvez possa ser compreendida pelo temor destas filhas de perderem suas identificações primevas, que, apesar da intensidade mortífera, ao menos lhe dão um lugar. Nos diz Marucco, "os desejos parentais foram alienantes, mas também constituintes" (MARUCCO, 1998, p. 100). O temor ao vazio, o temor a emergir a angústia do desamparo, pela fragilidade do Eu, faz com busquem refúgio na pseudo proteção materna.

A mãe de captura portadora de uma onipotência tirânica nega a sua existência em separado da filha, busca sua completude apoderando-se desta, convocando-a a ser seu duplo. Nestas histórias onde não existe o terceiro, dois fazem uma unidade, nos diz Kehl ((KEHL, 2020, p. 42). O narcisismo primário, lugar do duplo, garante, em fantasia, a imortalidade do Eu, a não castração para a mãe; para a criança corresponde a um estado de plenitude.[1]

 Prossegue Marucco "todo filho é ameaçado com o ódio, se deixa de desmentir a incompletude parental" (1998, p.94). [2] Sobre a pulsão de morte, Marucco nos indaga: "se a pulsão sexual é estimulada a partir do plus de sexualidade do objeto, se a própria vida surge da vida do outro, não poderíamos pensar que a pulsão de morte possa também ter uma adscrição no desejo de morte que provém do outro"? Em seu ódio? Em sua hostilidade? (MARUCCO, 2013)

  Nos diz Freud, "em qualquer manifestação pulsional, a libido está envolvida, mas nem tudo nessa manifestação é libido". Refere também que "é um tanto difícil apreender a pulsão de morte, intuí-la, por assim dizer, apenas como resíduo por traz de Eros. Ela nos escapa onde não é revelada pela aliança com Eros" (FREUD, 1930, p. 374)

"Mesmo lá onde ela (a pulsão de morte) surge sem propósito sexual, incluindo a mais fúria de destruição, não podemos ignorar que a sua satisfação está conectada a um do gozo[3] (GenuBnarcísico extraordinariamente elevado, pelo fato de essa satisfação mostrar ao Eu a realização de seus antigos desejos de onipotência. A pulsão de destruição, dirigida aos objetos, tem necessariamente de proporcionar ao Eu a satisfação de suas necessidades vitais e o domínio sobre a natureza" (FREUD, 1930, p. 374.)

  Na relação entre a mãe de captura e sua filha pode-se pensar que existe algo de destrutivo que perpassa o sadismo e a agressividade. Denises, Silvana, Robertas e Lauras, como a de Eliane Brum, aprisionadas ao terreno do narcisismo primário e do Eu Ideal, permanecem subjugadas ao narcisismo alienante e filicida de suas mães onipotentes, sem limites, sem interdições. Algo as mantêm prisioneiras - em uma servidão inconsciente aos mandatos endogâmicos maternos, aos pronunciamentos mortíferos, impedindo a possibilidade de autonomia psíquica, impedindo o nascimento psíquico destas filhas, que por estes grilhões permanecem submetidas.

  A questão da servidão inconsciente remete-nos a fragilidade do Eu, quando ocorrem as primeiras identificações, quando são introduzidos no Eu, os mais imponentes objetos herdados do complexo de Édipo. Embora acessível a todas influências posteriores, nos diz Freud (1923), o Super-Eu conservará por toda a vida o caráter que lhe foi dado por sua origem no complexo paterno (FREUD, 1923, p.60). Assim como a criança era compelida a obedecer aos pais, o Eu se submeterá ao imperativo categórico de seu Super-Eu. Este conservou as características essenciais das pessoas introjetadas: seu poder, sua severidade, sua inclinação para exercer o controle e para punir (1924, p. 297). O Super-Eu com suas raízes profundamente imersas no Id, também pode se fazer representar ao Eu, de forma mais distante da consciência do que o Eu. Refere Freud: "o Super-Eu também não pode negar sua origem no que foi ouvido, pois é parte do Eu e continua acessível à consciência a partir dessas representações verbais (conceitos, abstrações)".

  Sobre essa questão do traumático, Freud refere em Moisés e monoteísmo, que: os resíduos pré-verbais - "as impressões dos primeiros traumas ou não são transpostas para o pré-consciente ou são logo colocadas de volta no estado de Id [...]. Seus resíduos mnêmicos são, então, inconscientes e agem a partir do Id." (Freud, 1939, p. 137). Prossegue dizendo que o trauma são: ou vivências sofridas no próprio corpo ou percepções sensoriais, geralmente de algo visto ou ouvido. São impressões experimentadas precocemente e depois inteiramente esquecidas, inacessíveis à lembrança.... ((FREUD, 1939, P.103).

  Nestas histórias, as experiências psíquicas se tornaram traumáticas porque foram pouco providas de ligações simbólicas pelo excesso pulsional na relação com o outro - o objeto primário, e pela precocidade e pela insuficiência de recursos psíquicos que dessem conta de transformar esse excendente pulsional. São vidas marcadas pela escassez de recursos simbólicos que não permitiram que as intensidades fossem transformadas em representações mais elaboradas, que dessem conta de por em palavras o mal estar sofrido, pois estamos no tempo da constituição do arcaico, tempo pré-verbal. "Os efeitos do traumático, nos diz Freud, remontam a uma ou várias impressões fortes dessa época que escaparam a uma resolução normal. Tais experiências ficarão cindidas no psiquismo; são traços que não sofrerão as transformações dos processos de arranjos e rearranjos - os fueros que Freud referiu na Carta 52 (FREUD, 1895).

  Marcas sem uma história, sem um tempo. ... São experiências fragmentadas que, pela atemporalidade inconsciente, irão retornar e ressurgirão em busca de representação. 

Como nos diz Freud (1909), "O que permanece incompreendido retorna, tal qual uma alma penada, que não tem repouso até encontrar resolução e libertação" (FREUD, 1909, p.111).

REFERÊNCIAS:

Freud, S. (1950[1895]). Projeto para uma psicologia cientifica. IN: FREUD, S. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969. P. 335-413. (Edição standard brasileira, 1)

FREUD, S. (1909). Análise de uma fobia em um menino de cinco anos. IN: FREUD, S. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969. P. 13-133. (Edição standard brasileira, 10).

FREUD, S.(1923). O eu e o id. In: FREUD, S. O Eu e o Id, Autobiografia outros textos (1923-1925). São Paulo: Companhia das Letras, 2020. P. 14-74. (Obras completas, 16).

FREUD, S. (1924). O problema econômico do masoquismo. Obras incompletas de Sigmund Freud; 5. São Paulo: Autêntica, 2018. P. 287-301.

FREUD, S. (1939). Moisés e o monoteísmo. In FREUD, S. Moisés e o monoteísmo, Compêndio de psicanálise e outros textos (1937-1939). São Paulo: Companhia das Letras, 2019. P. 14-188. (Obras completas, 19).

KEHL, M. R. Os tempos do Outro. In: KEHL, M. R. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo, 2009. P. 111-135.

KEHL, M. R. O ressentimento na psicanálise. In: KEHL, M. R. Ressentimento. São Paulo: Boitempo, 2020. P. 27-64.

MARUCCO, N. Cura analítica y transferência. De la représion a la desmentida. P. 86-103. Buenos Aires: Amorrortu, 1998.

MARUCCO, N. C. A prática psicanalítica contemporânea: as zonas psíquicas e os processos de inconscientização. Psicanálise: Revista SBPdePA, Porto Alegre, v.15, n.1, p. 113-136, 2013.

MEIRA, A. C. S. Histórias de captura: investimentos mortíferos nas relações mãe e filha. São Paulo: Blucher, 2021.

[1] Desta forma, a mãe projetará em sua filha o que recusa em si mesma, em nome de manter a ilusão de sua onipotência narcisista.

[2] Garcia-Roza argumenta que a questão do Édipo e a interdição do incesto são impensáveis se não houver um pai ou, se preferirmos, a função do pai. O que Freud nos mostrou é que não há pai sem o assassinato do pai. Questão paradoxal: matar o pai, a mãe simbolicamente para o nascimento psíquico do sujeito.

[3] . Gozo narcísico que Freud toma no sentido da descarga, da expulsão da tensão libidinal do Eu,(FREUD, 1930).

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