(In)doméstica violência: marcas do narcisismo primário ferido?
Por que a violência doméstica, tema abordado com tanta recorrência na mídia, é paradoxalmente um assunto tão pouco estudado? Esse é um tema que inquieta, que envolve um par entre o qual se estabelece uma relação de submissão e maltrato de um lado e de subjugação e sadismo de outro.
O que faz com que uma mulher permaneça numa relação de maltrato e humilhação? Seria possível pensar que algumas relações amorosas se edificam e se estruturam para tamponar o desamparo dos primeiros tempos? Estas linhas são poucas para responder a questões tão profundas...
Em 1905, Freud escreve que as impressões que esquecemos deixam os mais profundos traços em nossa vida psíquica e se tornam determinantes para todo o nosso desenvolvimento posterior. Aqui, Freud refere-se às marcas da pré-história das escolhas amorosas: o desejo baseado na vivência de satisfação - princípio do prazer versus princípio de realidade. O esquecimento, nesse momento, é decorrente da amnésia infantil, "que torna a infância do indivíduo uma espécie de tempo pré-histórico" (FREUD, 1905, p. 77).
As coisas mudam com a virada de 1920, e o advento da noção de pulsão de morte sinalizará interferências nas escolhas amorosas. Freud afirmará que "os traços de lembrança mais intensos e duradouros são justamente aqueles que foram impressos por um processo que nunca chegou a alcançar a consciência". Assim, a relação que vai sendo tecida desde os primórdios servirá também como modelo para as relaçōes afetivas subsequente. Por meio dos encontros e/ou desencontros entre o infans e o objeto primário, moldam-se as futuras formas de amar, de ser, de viver, de sentir-se consigo mesmo e com o outro. Entretanto, uma ligação pouco erotizada pelo objeto primário, responsável por libidinizar o bebê desde o nascimento, será vivenciada como ausência do outro - do objeto primário -, deixando marcas, cicatrizes na constituição do narcisismo.
Seria possível pensar que essa escolha erótica de investimento amoroso baseia-se em um tentativa de dar sustentação rao Eu por meio de uma relação amorosa que supra as ausências precoces? Nesse tipo de relação amorosa, seria possível cogitar a existência de um relacionamento do tipo adicto, de dependência, para cicatrizar as marcas desse tempo primário - de um narcisismo primário pouco constituído?
Sendo assim, seria possível pensar que a ausência do outro nos primórdios da vida imprimiria uma busca incessante por um reencontro com esse objeto de amor perdido ou que nunca se teve? E que, em consequência dessa ausência precoce, ocorreriao forjamento de um ideal de Eu, colocado no parceiro, forjamento que estaria a serviço de cicatrizar as feridas de um tempo da pré-história desta mulher? A vítima de violência, às expensas de uma precária intrincação pulsional com seu objeto primário, por não ter tido autonomia psíquica em relação a esse objeto, buscaria reeditar e encontrar no outro recursos para a sua falta de amor, por uma crença de que desta forma poderia iria suprir o que não teve em sua pré-história?
Talvez isso nos dê indícios para entender por que as mulheres demoram tanto tempo para pôr fim a um relacionamento violento (quando conseguem fazê-lo): por mais que exista a violência, há também algo que lhe dá contornos e lhe estrutura, como a sutura de uma ferida que não cicatrizou, possivelmente por uma falha interna e estrutural de seu narcisismo primário e de um Eu ideal pouco constituído, sem contornos definidos e delimitados.
Finalizo este escrito com uma frase de uma carta de Freud a Fliess: "Conheci o desamparo da pobreza e passei a temê-lo continuamente" (MASSON, 1986, p. 375). Parafraseando Freud, afirmo que quem sentiu a desproteção nos amanheceres dopsiquismo passa a temer a dor e o terror de reviver a desproteção. Quando não é possível rastrear o desamparo, o vazio de si, busca-se encontrar no outro o amparo para curar as feridas do narcisismo primário ferido, só "restando experimentar a repetição da mesma fatalidade" - "esse eterno retorno do mesmo" (FREUD, 1920, p. 147).
REFERÊNCIAS
FREUD, S. (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma histeria ("o caso Dora") e outros textos (1901-1905). São Paulo: Companhia das Letras, 2016. (Obras completas, 6)
FREUD, S. (1920). Além do Princípio do Prazer. In: FREUD, S. Escritos sobre a psicologia do inconsciente. Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Obras psicológicas de Sigmund Freud, 2).
FREUD, S. (1940 [1938]). A cisão do Eu no processo de defesa. In: FREUD, S. Moisés e o monoteísmo, compêndio de psicanálise e outros textos (1937-1939). São Paulo: Companhia das Letras, 2018. (Obras completas, 19).
MASSON, J. M. (org.). A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhem Fliess 1887-1904. Rio de Janeiro: Imago, 1986.Digite o texto aqui...