No princípio foi o ato?

Marcas da violencia doméstica

Neste escrito, busco dar voz a temática da violência doméstica, fazendo um breve percurso metapsicológico em psicanálise. A violência aqui é tomada no contexto de uma relação intima que provoca danos físicos, sexuais ou psicológicos, incluindo atos de agressão física, coerção sexual, abusos psicológicos e comportamentos intimidadores.



A violência contra a mulher não começa de repente: comentários com tom depreciativo, gestos, atitudes de subjugação passam muitas vezes desapercebidas, já que se apresentam de uma forma tácita. Muitas vezes a própria mulher que sofre a agressão não percebe a violência, o que pode a levar a acreditar que essa violência não é tão grave ou é mais suportável, já que não deixa marcas no corpo.

No início, era apenas ciúme, mas ela até gostava que ele sentisse ciúmes dela, via isso como sinal de que ele gostava dela.Em troca da promessa amorosa no relacionamento com o parceiro, Cristina* foi deixando de ter contato com amigos e colegas de trabalho O ciúme evoluiu para situações de controle cada vez maiores. A cada explosão do parceiro, as agressões verbais eram justificadas pelo estresse no trabalho. Em mais um rompante ela decide terminar o relacionamento. Cristina foi ao encontro do ex-namorado no portão de sua casa, pensou que ganharia flores, um pedido de desculpas e talvez até retomassem o relacionamento,; teve dois dedos da mão quebrados.

Para Nara*, o ciúme "até apimentava a relação", fazia sentir-se segura por ter o amor do parceiro. O namorado prestava atenção em todos os pormenores: gestos, posturas, olhares - os mínimos detalhes eram observados. "No início, isso era bom. Parecia que, desse jeito, ele gostava de mim, me notava, me olhava". Nara foi se submetendo aos mandatos do namorado, na esperança de que, um dia, ele pudesse mudar. Nara achava que a insatisfação era "coisa da sua cabeça". Com o tempo, a cor do batom, a roupa que ela vestia, uma mensagem no celular, um perfume diferente e um olhar mais demorado em uma direção passaram a ser o enredo de discussões cada vez mais violentas.

O que inicialmente parecia ser apenas ciúmes e insegurança vai se revelando uma relação abusiva. Algumas mulheres demoram para se dar conta da gravidade da situação, ficam enredadas e anestesiadas nessa dinâmica destrutiva. Muitas vezes quem violenta justificativa seu ato culpando e acusando a mulher de ter provocado, ter dado motivos para o maltrato que sofreu. Desta forma, o homem violento extravasa seu sadismo na perversidade do ato de violência: não importa o que esta mulher faça, ela será o alvo da destrutividade do parceiro. Pouco a pouco, vão-se tornando ordinárias as agressões. Não é incomum as mulheres ficam passivamente identificadas às acusações projetadas nela pelo agressor, acabam acatando-as e até mesmo, muitas vezes, sentindo-se responsáveis pela violência sofrida, como se tivessem dado motivos e/ou provocado o ato violento. Cristina, Nara e outras tantas mulheres demonstram que algo as impede de romper com esse tipo de ligação afetiva ou que somente conseguem fazê-lo depois de muita violência, terrorismo e sofrimento emocional.

*Cristina e Nara são nomes ficcionalizados, histórias que foram divulgadas nas mídias de comunicação, com muitas mulheres.

Este trabalho está publicado como capítulo do Livro Pluralidades: entre o racismo, o feminismo e as questões de gênero.

À venda no Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre, e na Cafeteria Toque Final 

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